O dilema do alemão
A decisão de morar fora estava tomada mas decidir onde se estabelecer levou um tempo.
Minha mãe mora em Hamburgo, Alemanha, tenho irmãos em Berlim, outro em uma cidade menor, uma pessoa querida em Munique, então o mais prudente seria se mudar para esse país, certo?
Errado. Eu queria fugir do alemão como o diabo foge da cruz.
Veja bem, eu morei na Alemanha e nos Estados Unidos na infância, mas eu tive tantos problemas pessoais em Hamburgo que bloqueei o entendimento da lingua quase que para ficar surda ao que pudesse vir de lá.
Tive prazer em continuar estudando inglês, tanto que virei professora do idioma.
Em 2013, depois de muitos anos de análise, eu cheguei a conclusão de que estava na hora de enfrentar esse monstro. Paguei um curso de verão e apartamento estudantil em 36 meses, uma grande amiga passou as passagens no seu cartão (eu não tinha limite alto) e eu deixei de pagar umas contas de casa para pagá-la. Convenci uma colega de ir também e fomos passar o mês de julho em Berlim. Essa viagem também foi a primeira coisa verdadeiramente cara que eu consegui custear sozinha.
Apesar de ter sido super bem recebida pelos meus irmãos, ex madrasta querida, e beber muita cerveja boa e barata, eu tive o reforço dos sentimentos que me acompanharam desde a infância toda vez que deparava com algumas pessoas rudes, como foi na escola de alemão;
Primeiro dia de aula: expectativa no teto e eles decidem tomar metade do tempo para refazer testes de nivelamento que já haviam sido realizados pelo site anteriormente.
Segundo dia: Sala de aula no porão com as janelinha cerradas em pleno verão, até aí tudo bem. Professor entra na sala todo simpático. Me alegrei até dar a primeira respirada. Nem moradores de rua fedem tanto!
Fui na coordenação para pedir que sugerissem um banhozinho ao professor.
Terceiro dia: Professor adentra a sala usando exatamente as mesmas roupas do dia anterior e trazendo consigo aquele Eau de Parfum fisiológico e digno da idade média.
Pedi transferência de turma já que estava difícil manter a concentração e o café da manhã dentro de mim, o que me foi concedido.
Quarto dia: Sala de aula com janelas, nenhum cheiro forte, agora vai!
Após 15 minutos o professor começa a falar sobre os projetos sociais pelo mundo e ao constatar que eu era brasileira ele decide dar um longo discurso de como o Brasil era feito de bandidos, que um amigo tinha sido assaltado em Copacabana e que então o país inteiro não prestava nem para turismo. Ao sinalizar que ele não conhecia o país, muito menos seus habitantes, e que estava sendo indelicado e desrespeitoso comigo ele ficou furioso, tentou arrastar os outros alunos para a discussão (sem sucesso), gritou, ficou vermelho e tentou me intimidar já que eu mantinha a minha opinião de que ele estava ali para dar aulas de língua estrangeira e deveria ser neutro em relação às suas convicções.
A coisa só foi piorando e após um tanto de acusações contra o Brasil e a mim eu perguntei se ele achava certo eu supor que ele era nazista já que a Alemanha era conhecida por conta da segunda guerra mundial. Nessa hora eu me perguntei se ali havia algum tipo de lei “Maria da Penha” por que eu jurava que uma mesa ou cadeira viria em minha direção.
Levei esse assunto à diretoria e pasmem, eles acharam a conduta do professor perfeitamente normal. Ainda ouvi da coordenadora que eu reclamava demais, já que no dia anterior eu tinha pedido para trocar de sala por conta do professor cheiroso.
Com muito custo, saliva e alternando o alemão com inglês, eu finalmente consegui convencê-los de me devolverem o dinheiro para que eu fizesse o curso em outra instituição.
Saindo da escola eu andava em passos largos, me sentindo humilhada e injustiçada. Logo eu que era conhecida por ser uma professora carinhosa e acolhedora, o que fiz para merecer isso? Na primeira esquina eu achei um muro baixo perto de uma árvore e engasgada eu chorei, molhei a minha blusa com as lágrimas, me senti sozinha e sem valor, e naquele momento me arrependi de ter deixado as minhas filhas, na época com 5 e 3 anos, de férias com os pais para que eu pudesse passar 22 dias ali e me lembrei de todas as pessoas que nao me apoiaram, e me disseram que aquilo era um capricho e que de nada valeria o meu esforço.
O valor tinha que ser devolvido para a agência de intercâmbio e só então ela contrataria outra escola. Passei uma semana praticando a língua pelas ruas de Berlim, vagando e refletindo, já sem lágrimas, sobre o que me trouxera até ali.
Me admirei com o carinho dos meus irmãos que estavam sempre presentes e me abraçavam apesar de não termos crescido juntos. Em um determinado momento eu estava quase sem dinheiro (e sem contar a ninguém) e eis que recebo o convite para almoçar na casa da minha ex madrasta, que havia se separado do meu pai há uns 20 anos. Ela e seu marido me receberam de braços abertos e ao final ela me abraça forte e me entrega envelope com um cartão lindo e dinheiro o suficiente para fazer tudo o que eu ainda nao tinha feito em Berlim. Acho que até hoje ela nao sabe do quanto eu estava precisando daquele abraço, dos sorrisos, de ser ouvida e daquela ajuda. Serei eternamente grata.
O segundo centro de idiomas foi bom mas o tempo voou entre livros, paisagens, passeios, reencontros e museus e logo eu estava de volta, não com o que eu queria ter aprendido, mas com o que eu precisava ter aprendido.
Depois dessa viagem eu me libertei de ser a vítima para entender que eu tinha sim o direito à escolha e que os meus desejos mereciam ser alcançados.
Você acredita que existe uma força maior que te guia por caminhos tortuosos para que você viva e receba exatamente o que você precisava?